A versão em seriado de “The Handmaid’s Tale”, ou “O Conto da Aia” surgiu num momento onde assuntos em ebulição como o feminismo, a tolerância e o antifascismo se entrepõem a um clima político conservador que sombreia praticamente todo o mundo. Baseado no livro de Margareth Atwood, escrito em 1985 e transformado em filme em 1990 (aqui no Brasil sob o título de “A Decadência de uma Espécie”), é um olhar para o precipício de nossa cíclica sociedade.
Sua contundência atual se dá porque parece tanto profético quanto uma história que já vimos: o ser humano – geralmente uns poucos, e você sabe quem são – busca reprimir e controlar a maioria através de uma religião e/ou de princípios moralistas para se manter no poder. E costumam suceder, como o fazem na República de Gilead, país outrora conhecido como Estados Unidos da América.
“Melhor nunca significou bom para todos”
Gilead é um desenho do que buscam muitas correntes políticas: um retorno forçado ao passado dos “bons costumes” do Antigo Testamento, das castas e de muito pouca tecnologia.
“Agora estou desperta para o mundo. Eu estava dormente antes. Foi assim que deixamos acontecer. Quando eles abateram o congresso, nós não acordamos. Quando eles culparam os terroristas e suspenderam a constituição, também não levantamos. Eles disseram que seria temporário. Nada muda instantaneamente. Em uma banheira que vai gradualmente se aquecendo, você é cozinhado vivo antes que possa perceber”, narra Offred – que um dia foi June, mulher livre, arrancada de seu marido, filha, emprego e suposta liberdade.
Rebatizada com o nome do homem da casa onde irá prestar seus “serviços” (of Fred), seu trabalho se resume a fazer compras triviais, ficar calada, subserviente, enquanto tenta a “benção” de conceber um filho para um casal de classe dominante e parcialmente estéril.
Neste universo, devido à poluição e DSTs, quase toda população não consegue mais se reproduzir. Escravizadas, as aias vestidas de vermelho e constantemente usando um “antolho” por chapéu, têm essa função. Num horrendo ritual mensal, elas são estupradas por seu “dono” temporário na presença da esposa.
Embora essa distopia pareça uma hipérbole ficcional narrativa, o que permeia e se torna um elemento de identificação é a sobressalente ameaça à liberdade por parte de Estados cada vez mais totalitários, com direitos humanos em retroação, a fragmentação da democracia e a insalubridade do machismo. Será que sempre foi assim?
“O Conto da Aia” é um alerta e June/Offred, vivida pela espetacular Elisabeth Moss, um símbolo de resistência do qual é impossível retirar o olhar.
Bendita Seja Elisabeth Moss
A primeira vez que a vi foi em “Garota, Interrompida” (1999), depois foi Peggy Olson em “Mad Man” e após tantos anos de indústria, ela chega ao “Conto da Aia” tendo aperfeiçoado duas características essenciais a uma atriz: talento e carisma.
Sua capacidade de expressar nojo, ódio e qualquer emoção silenciosamente, mas com uma intensidade brutal e sem nenhuma afetação “artística” é digno de nota. E de todos os prêmios que ela recebeu após a primeira temporada.
Já a empatia que sentimos por Moss nos enlaça ainda mais à trama.
Dos horrores que ela sofre, partilhamos. E entendemos.
A segunda temporada
Semana passada estreou a segunda temporada nos EUA, com dois episódios liberados de uma só vez. Imergimos exatamente onde fomos deixados em profundo desalento no final da primeira parte.June sendo enfiada dentro de um furgão do governo, grávida e com destino incerto.
Se não me agradou ouvir “Feeling Good” da Nina Simone no último episódio da primeira season – porque amo tanto essa música e detesto seu uso leviano e massificado na TV – mudei de ideia. A trilha sonora é sensacional, e faz parte do elemento narrativo. E aí, perdi o chão, quando antes dos dez primeiros minutos dentro do segundo volume, toca “This Woman’s Work” da Kate Bush, numa das cenas mais atordoantes já exibidas num seriado.
Se esse é o tom e a potência, teremos uma season demoníaca e à altura da primeira.
A continuação era uma preocupação: o livro no qual se baseia tem praticamente todos os eventos filmados. Vide o que aconteceu com os roteiros de “Game of Thrones” quando a fonte secou.
Mas podemos ficar sossegados – e bem tensos – Bruce Miller, o criador do seriado e Margareth Atwood, a autora parecem estar em completo acordo e colaboração.
Isso dito, podemos esperar Tia Lydia (vivida louca e incrivelmente por Ann Dowd) tocando o terror.
Inspirado, criei…
As tulipas que Serena Joy (Yvonne Strahovski), esposa do comandante Fred, tenta sem sucesso e miseravelmente cultivar em seu jardim é o perfeito simbolismo das aias: férteis, cheias de vida, vermelhas… Foi o ponto inicial do desenho que fiz primeiramente em nanquim.
E juntamente com isso, a frase que acompanha June e todos que são resilientes: “Nolite Te Bastardes Carborundorum, Bitches!“.
“Não permita que os bastardos te reduzam a cinzas, vadias!”